Primeiro tarô feminista brasileiro é mais intuitivo e quebra barreiras
Por Claudia Dias, colaboração para a Universa
Há pouco mais de quatro anos, a artista gráfica e colagista Elisa Riemer começou a se aprofundar no tarô, o que até então se resumia à curiosidade. Ela buscava respostas para questionamentos pessoais e via o baralho como alternativa para alcançar a espiritualidade.
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Na época, sentiu-se desconfortável diante dos jogos repletos de figuras masculinas. "Me incomodava muito com a imagem de O Imperador sendo um homem, pois eu sempre me vi como imperadora da minha própria vida", rememora Elisa, 32 anos, que reside em Maringá, no Paraná.
Não precisou de muito tempo para ter a certeza de que deveria faer algo e mudar o cenário, explorando a energia feminina. Decidiu criar sua própria coleção, trazendo para as cartas as várias facetas do feminino, através da sua arte com colagem. Assim nasceu o Nosotras Tarot, o primeiro deck de tarô brasileiro feminista.
A primeira criada por ela, A Lua, não foi o pontapé inicial por acaso. Nas vezes em que Elisa se debruçou sobre o baralho em busca de respostas, A Lua se repetia. "Na época, pouco entendi do seu significado. Hoje entendo como um caminho pela nossa própria escuridão, em busca da luz. Só sei que aquela repetição mexia comigo, remexia algo no meu centro criativo. Senti como um chamado", lembra-se.
O processo de criação de Nosotras está em seu quarto ano e segue em desenvolvimento. A primeira fase foi concluída recentemente, com o lançamento do deck do primeiro grupo, batizado de As Arcanas, com 22 cartas. No próximo mês, Elisa vai lançar a segunda parte da coleção, Copas & Espadas, por financiamento coletivo (mesmo processo adotado na etapa inicial).
A deck, no feminino
A Dependurada? A Eremita? Quem conhece um pouco sobre tarô sabe que o convencional é encontrar O Dependurado, O Eremita, O Louco, O Imperador, Os Enamorados, O Carro, entre outros arquétipos. O Nosotras Tarot, entretanto, renomeia as cartas, recorrendo a artigos e termos femininos, originando A Louca, A Imperadora, As Enamoradas, A Carruagem e assim por diante.
A artista, aliás, vê seu trabalho como "uma baralha". "Nosotras, uma deck e suas arcanas! Gostaria muito que essa concepção ficasse marcada dessa forma, que fosse realmente uma deck feminina e feminista, mas sei que isso é considerado uma heresia para muitos. Mas só entrando em contato com As Arcanas é possível compreender que grande mulher essa baralha é!", opina Elisa.
E seria esse projeto mais indicado para mulheres, tanto tarólogas como interessadas nas respostas do tarô? De acordo com a criadora, não. "Nosotras é para todos que querem entrar em contato com seu lado feminino. O baralho é, sim, cercado de elementos femininos, muito profundo e intuitivo, lunar, então é necessário se abrir para isso, para o conhecimento das mulheres, considerado 'secundário' em nossa sociedade", avalia.
A construção da obra
Como explica Elisa, seu processo criativo deriva de duas fontes: intuição e (muito) estudo. Para o conhecimento, ela lê todo tipo de informação disponível, os significados ocultos, as simbologias perdidas, a vida de quem manuseou e de quem produziu as cartas.
"Isso tudo entra em minha imaginação e transparece para mim através de sonhos, de imagens intuitivas etc. Pesquiso, estudo, vou a fundo, mas, para formular uma carta, preciso que ela me responda antes, que dialogue comigo e mostre quando ser desenhada. E sinto que elas realmente fazem isso", afirma.
Por essa razão, não há lógica na sequência de criação. Desde o início, Elisa tira cada uma das cartas para saber o momento certo fazer sua releitura. Assim também acontece com o fluxo, que não é regrado.
Tanto que, em certas situações, bastaram poucos rascunhos até a versão final. Outras demandaram muito tempo até que fossem concluídas, o que trouxe para a artista grandes aprendizados sobre a valorização da intuição e de respeito pela linha do tempo.
De acordo com Elisa, "O Mundo" (Universo em Nosotras) foi muito difícil de ser concluída, diante da complexidade de retratar a plenitude, sem ela se sentir completamente plena. "Foi uma das que pensei que nunca iriam sair", confessa.
Em contrapartida, outras se revelaram importantes e especiais, caso de A Lua, o começo da sua jornada, A Estrela ("Me ensinou a ter um contato tão profundo comigo e com o Divino que habita em mim), A Dependurada ("Me ensinou algumas das lições mais difíceis que já precisei aprender") e A Eremita ("É uma mãe que encontra e leva luz para o mundo").
A força e a energia das mulheres
Em Nosotras, a energia feminina é colocada em primeiro plano. No início da concepção, a artista repetiu seu método de estudo e pesquisou quem havia desenhado alguns dos baralhos mais famosos. Foi assim que conheceu Pamela Colman Smith e Frieda Harris, que assinam o visual dos decks de Arthur Edward Waite e Aleister Crowley, respectivamente.
As duas são referências para a colagista paranaense, bem como a artista Marina Abramovic e a pintora Frida Kahlo. "O trabalho da Pamela foi revolucionário para nós. O conhecimento místico, na época, era muito restrito a pequenos grupos, normalmente masculinos, e praticamente proibido a nós, mulheres, artistas, lésbicas, revolucionárias, e ela teve um papel incrível na difusão do tarô e de suas imagens", defende.
"A Marina Abramovic tem uma relação muito interessante com a dor e com formas de utilizá-la para transformar em ouro aquilo que nos machuca, assim como a Frida Kahlo, que é outra inspiração", completa.
A reinterpretação que Elisa faz, segundo ela, é uma reativação das imagens femininas e de suas memórias. "Trago para a atualidade as visões de Pamela Smith, as histórias das 'fortune tellers', as interpretações femininas das cartas, que se perderam na história", diz.
Além disso, trouxe para o mais recente projeto um pouco de seu trabalho de arte política, valorizando a força feminina, cheia de significados e resistência. "Ela é incontestável e presente em todos os momentos da história do mundo. Não houve um só ano, um só dia, desde a criação da humanidade, que nós, mulheres, não estivemos presentes, subvertendo as normas, criando formas alternativas para resistir", diz.
Inexistência de padrões
A unidade de Nosotras se confirma na presença das mulheres e na beleza das criações. De resto, não há uma padronização, inclusive nos perfis femininos apresentados. Apesar de recorrer bastante a elementos da Belle Époque, há mulheres gordas, negras, novas, velhas, numa miscelânea tão rica quanto a coletividade feminina.
A artista trabalha com colagem – no caso, manual e digital – e recorre principalmente a cartões postais de 1890 a 1930, o que rende descobertas fantásticas.
"É muito difícil encontrar mulheres do jeito que imagino, na pose que quero, com o corpo que projeto. Mas encontro imagens incríveis, muito representativas, de rainhas africanas, poderosas mulheres mães, realezas fartas. Ao me deparar com elas, sinto suas mensagens, pressinto onde elas devem ser colocadas, qual o lugar no tarô que mais as representa", esclarece.
Dependendo do ponto de vista, as cartas são instigantes e, até certo ponto, desconfortáveis. "Elas mexem com coisas dentro de nós que nem sempre estamos preparados para lidar. Não queremos olhar para nossa sombra, nossos medos e desejos. A Diaba, por exemplo, é uma carta de tentações e é difícil olharmos para elas, admitirmos que mexem conosco e, às vezes, nos tiram do eixo", reconhece.
A própria nudez, quase onipresente, também desperta essa percepção, mesmo que involuntariamente. "Para mim é muito natural, muito belo e simples, porque é como nós somos quando tiramos as roupas. Mas, para algumas pessoas, é um desafio olhar o corpo, lembrar que ele existe, aceitar o corpo e suas dobras, seus movimentos, suas infinitas possibilidades", pondera.
Se o deck expressa respeito e devoção à arte do tarô e à origem do mundo (as mulheres), o nome do projeto também é tido como homenagem e agradecimento à militância feminina em toda a América Latina.
Processo invertido
Além de inovar trazendo apenas mulheres, Elisa seguiu uma lógica inversa na criação. Ela concebeu as imagens e fez todo seu processo de releitura antes que a taróloga Paula Mariá, parceira no projeto, escrevesse sobre cada arquétipo.
Nosotras Tarot é descrito como "Uma Viagem ao Útero Cósmico", que concebe a vida. Mas o projeto é, de certa forma, autobiográfico. "Representar a 'jornada do herói' em cartas femininas foi um contato profundo com a mulher que há em mim, seu prazer, suas dores, sua força e seus traumas", diz.
Para quem não é familiarizado com o tarô, o primeiro grupo narra a trajetória que vai de O Louco até O Mundo (no caso de Nosotras, A Louca e Universo). Os 22 arquétipos do grupo principal retratam os passos de aprendizagem de um herói.
As cartas trazem uma simbologia e uma interpretação própria que precisam ser descritas para quem for utilizá-las. Esse trabalho foi desenvolvido pela taróloga Paula Mariá, 27 anos, também de Maringá.
"Nosotras, especificamente, é um deck cheio de simbolismos, de detalhes que transpassam a interpretação simples dos arcanos, como A Eremita, que é mãe, e a águia de A Imperadora, que é fêmea. Todas essas nuances trazem diferentes leituras para o baralho e diferentes possibilidades em uma consulta", explica Paula.
Como ela pontua, o contato com o tarô é muito sensorial. Sempre que atende alguém, Paula dispõe todos os seus decks à frente e pede que a cliente escolha com qual deles deve seguir. "É muito comum que pessoas em jornadas intensas de autoconhecimento, muito sensibilizadas e dispostas a um olhar mais profundo sobre elas mesmas, escolham o Nosotras, que tem essa energia profunda e para dentro", revela.
Serviço:
O Nosotras Tarot está disponível na loja online de Elisa Riemer. Quem quiser conhecer um pouco mais sobre o trabalho da artista paranaense, até julho, ela participa de exposição no Sesc Santana, em São Paulo, com o mural "A Liberdade é Inegociável".
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